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Calado Ferreira

 
 
 

Diferentemente da burrice, que é praga de Deus e cola nas gentes desde o momento em que o espermatozoide mais esperto mergulha convicto no óvulo que o abraça receptivo, a cretinice é patologia assimilada culturalmente. Tal qual seu xará, que nasce com destino marcado pra cangalha, o burro-homem ou o homem-burro, escolham, carrega sua desídia como um fardo impossível de se libertar. O desinfeliz, por mais que lute, tem na burrice sua segunda pele. Por mais que a arranhe, mais a burrice brota. Não confundir, por favor, com ignorância. Conheço ignorantes muito mais inteligentes que alguns burros que aprendem coisas – muitos aprendem até teorias complexas -, mas destes tratarei outro dia. Hoje é dia de falar dos cretinos e de sua cretinice. Há cretinos nas ciências, nas artes, nos ofícios mais ou menos laborosos. Há cretinos em bares e cretinos atravessando ruas. Nas boates e nos restaurantes da moda; no mercados financeiro e São Sebastião. Os cretinos vão chegando sorrateiramente e se instalam feito posseiro em suas áreas de influência. Vão os cretinos dando curso à sua cretinice tratando de acumular informações banais ou sistêmicas, as únicas com que conseguem travar diálogo. São antenados, politicamente corretos, leem e discutem o óbvio, destacam-se nas reuniões mundanas por sua capacidade de estender assuntos que não resistiriam a dois minutos de observação inteligente. Coisas como vasectomia a laser, abdominoplastia não-invasiva, o último bésti séler, cientologia, dieta de proteínas, as novidades tecnológicas das oficinas do corpo, as maravilhas da clorofila, como conhecer e beber um bom vinho( e tome daquele ridículo circular de copo que os enólogos analfabetos adoram), e, principalmente, tratados sociológicos de sarjeta: violência urbana, bissexualismo cruzado, raízes da corrupção endêmica na América pré-hispânica, os desdobramentos culturais da influência no modo de vida ianque. Chato pacaraio, véio. O mundo do futebol, por exemplo, está repleto de cretinos. Dando opiniões, sustentando estatísticas, desfiando iscautes insuspeitos, agredindo a língua-mãe por todos os meios gravitacionais e eletrônicos a seu alcance. Cuidado com eles. Confundem sisudez com seriedade e conferem à frase um tom de circunspecção à guisa de torná-la verossímil. Os cretinos, cuidado!, são dissimulados, e muitas vezes só os percebemos quando já estão incrustados em nossas vidas, e, impotentes, já nada podemos fazer para deles nos livrarmos. A cretinice é supra-ideológica, transreligiosa, includente. Dela ninguém está livre, ainda que recebendo a dádiva de ser tricolor.

Louvo os que não aceitam a cretinice e travam com ela batalha épica, conclamando à tarefa suas forças mais recônditas. Conheço dois que venceram a luta não sem pagar um certo preço pela vitória. Um deles é o simpático Calado Ferreira, de quem tratarei hoje. Semana que vem cuidarei de Vivico Alface.

Calado não recebeu este nome na pia batismal, onde foi ungido pela água-benta e decretado Antônio. Mora no bairro do Stucky, um pequeno enclave de gentes e casas de gentes entre Mury e Lumiar. Por haver no bairro alguns outros Antônio, estes viram seus nomes ligados à origem paterna. Assim, o Antônio filho de Chico virou Antônio de Chico; o filho de Bento, Antônio de Bento; o de Ferreira, Antônio de Ferreira. Com o passar dos dias que passam no suceder inevitável de sóis e luas, Antônio de Ferreira perdeu o “de” que o ligava formalmente ao pai, sobrando-lhe o tratamento simplificado de Antônio Ferreira. Antônio sempre foi falante, até demais, diferentemente de seu pai, um homem de poucas palavras, adepto dos monossílabos e econômico até nas orações que o padre lhe recomendava a pretexto de acertar suas contas com Deus. Socialmente integrado, Antônio Ferreira ia vivendo a vida no bater ponto gostoso das coisas simples que formam o enredo prosaico das vidas das pequenas comunidades do interior. Tudo a seu tempo. Escola, futebol, bola-de-gude e pipa na infância; trabalho, cachaça, baile e uns aconchegos gostosos na adolescência; casamento no brotar da barba, e barriga no balcão para o resto da vida, porque ninguém é de ferro. Se exagerar, tem a Bíblia.

Já casado, com um menino de dois anos, Antônio continuava tocando sua rotina nesse tocar gostoso que a rotina confere a quem dela não espera nada mais que o passar dos dias. Mas Antônio não andava feliz. Conversava cada vez menos, bebia cada vez mais. Já não dava conta dos cheiros que a mulher cobrava em casa e com o menino levado ia dando sinais de perder a paciência. Dia daqueles, sua mulher acordou na hora certa de fazer o café e cuidar de ajeitar o menino para a escola. Sonada ainda, viu sobre a mesa de jantar um papel com uns escritos. Lia mal, mas lia. No tranco, mas lia. Era um bilhete de Antônio. Lacônico: “Estou me tornando um cretino. Só o silêncio me salvará”. A partir desse dia Antônio nunca mais emitiu um som sequer. Mergulhou em profundo estado de silêncio, devotando-lhe lealdade fundamentalista. Daí o rebatismo de Calado. Chegava na venda, apontava o que queria na prateleira, e bebia e ouvia, e bebia e ouvia. Volta e meia, esboçava um discretíssimo sorriso. Muito mais raramente escrevia um bilhete seco, coisa de uma ou duas palavras. Sua mulher, já não bem cuidada nas obrigações maritais, via-se agora compartilhando o teto com um morto-vivo, cabendo-lhe a tarefa solitária de prover a família com os parcos réis de uma ou outra diária que faturava nas casas de umas madames do Condomínio Stucky, pertinho de sua casa. Demorou pouco para cravar um sonoro pé-na-bunda do Calado. Jéssica, cá entre nós, ainda guardava uns certos atrativos, e tinha mariposa voando em volta de seu filamento, o suficiente para fazê-la crer que perder tempo com aquele zumbi só ia lhe contabilizar prejuízo e abstenção prematura.

Calado foi morar num barraco da família, a cerca de uns duzentos metros do cemitério que ladeia a estrada que liga o bairro a Friburgo pela trilha do Amparo. Sua rotina barzeira, no entanto, foi mantida rigorosamente intacta. Vive da ajuda da família e da poda de hera nos jardins das casas de veraneio do mesmo condomínio onde sua mulher amealha seus trocados.

Com o tempo passado e passando, seus amigos notaram que as esporádicas reações vitais de Calado – o sorriso discreto e os bilhetes secos – estavam relacionados com um fato simples: o desempenho de seu Fluminense, sua paixão desde menino. O sorriso das vitórias e das boas fases só o concedia a tricolores, e os bilhetes a tricolores muito especiais, entre os quais, para meu orgulho, o Calado me inclui. Respeito-o em sua silenciosa sabedoria e em sua decisão drástica e corajosa. À cretinice iminente, o silêncio, ainda que o silêncio representasse o rompimento dos elos sociais. Estive com ele faz um tanto de tempo. Bebia na venda de sempre e sorriu para mim, pedindo com um gesto que eu esperasse mais um pouco. Foi ao balcão, pegou um pedaço de papel de embrulho e um lápis que libertou do barbante. Escreveu algo sem pressa e passou-me o escrito: “Tá tudo bem, tricolor, o fim do jejum está próximo”. Voltou a sorrir e pediu com o dedo estendido mais uma, que fiz questão de pagar. Calado, por efeito de sua abstinência verbal, do crescimento espiritual reservado aos silenciosos, sabia o que não nos é dado saber. Vinha coisa boa.

Era abril de 2010

Semana que vem, Vivico Alface e a predição conspurcada.