A camisa do Manfra

Não seria justo dizer que ele detestava cunhados. Ele é o Pedro Antonio, razão e personagem da história que aqui se vai contar. Talvez fosse correto considerá-lo prevenido em relação a cunhados. Prevenido parece-me adequado. Pedro Antonio trazia de cunhados em geral uma impressão desagradável. Tinha-os como um contrapeso inevitável do pacote da paixão. Muito bem, alguns de vocês podem argumentar que nem todas as namoradas têm irmãos, mas no caso do Pedro não houve exceção que servisse para confirmar a regra. Todas as suas namoradas incluíam como acessórios indefectíveis irmãos.


 
 
 

Não foi diferente com sua última namorada, que virou noiva, que virou mulher. Renata tinha um irmão que em nada diferia dos irmãos comuns, ameaçador em sua proximidade e inconveniente em sua inevitabilidade. Tratava o Pedro com uma desconcertante intimidade, regada a brincadeiras de mau gosto – coisas como zoar da linha de cintura em expansão ou da calvície emitindo seus primeiros sinais de fumaça. E, principalmente, de piadas da internet. Nada mais aborrecia Pedro que piada de internet. Aborrecia-o por entediá-lo.

Ciente do contencioso a administrar enquanto ele e Renata cumprissem as imposições da liturgia casamental, Pedro foi tomando precauções: evitava morar em condomínio com área de lazer que incluísse os equipamentos de praxe, como piscina, churrasqueira e sauna; esquivava-se com arte de esgrimista dos almoços patriarcais dos domingos; negava-se o sonho do sítio na serra; especializou-se em forjar desculpas para não compartilhar os jogos de futebol da tv por assinatura. Esta última esquiva se lhe mostrou menos onerosa, já que seu cunhado, Euclides, era botafoguense e ele, Pedro, tricolor apaixonado. Apaixonado mesmo, de acompanhar o Fluminense com fidelidade religiosa. No Maraca, na Rua Bariri, vez em quando em São Paulo ou BH. Mas havia os jogos neutros, aqueles da Seleção ou das finais em que o Tricolor e o Botafogo houvessem abortado suas pretensões . Preventivamente, Pedro já ligava pro Euclides e alertava-o de que não veria o jogo, chateado que estava pela eliminação prematura de seu Fluminense. Funcionava.

Pedro guardava algumas relíquias tricolores como troféus. Uma faixa do campeonato de 69; uma flâmula do de 71; um pedaço de pano da bandeira que sua mãe lhe confeccionara para as campanhas de 75 e 76, quando a Máquina estraçalhou; e outros. Uma dessas lembranças, no entanto, tocava o Pedro com uma emoção especial: uma camisa usada pelo Manfrini durante a conquista do Carioca de 73. Pedro talvez exagerasse ao afirmar que aquela camisa 10 era a da famosa final da chuva, onde seu Fluminense sapecara um orgásmico 4×2 em seu mais famoso rival. –“ É a camisa da chuva, pode acreditar!”. Seus amigos não acreditavam, já que Pedro, ainda que apaixonado pelo tricolor, nunca foi de bajular dirigente ou de freqüentar o clube. Era apenas torcedor, e se orgulhava disso. Daí muitos descrerem que ele tivesse acesso a uma jóia tão rara, a camisa do maior craque do futebol brasileiro daquele ano, e justamente a da final histórica. A camisa do Manfra, como a ela ele se referia, era mais, muito mais que um objeto guardado com amor em um escaninho bom da alma e num ponto nobre da casa, era uma obsessão. Pedro só dormia depois de tocá-la. Muitas vezes, sem que Renata jamais houvesse se apercebido, ele a encaixava entre o travesseiro e a fronha, e sonhava com chuvas divinais, como a daquela quarta à noite de 73.

A vida de Pedro lhe foi sendo generosa, antecipando-lhe muitos dos sonhos que os brasileiros comuns só realizam no fim das suas, quando realizam. Comprou um bom carro, que trocava metodicamente a cada dois anos ( -“Sabe como é, carro brasileiro tem que trocar antes dos 30 mil rodados. Preserva-se o valor de revenda e evita-se a progressão incontrolável dos custos de manutenção. Tem que trocar na garantia, dois anos, dois anos!”). Quando muitos ainda sofriam a imolação do aluguel, Pedro e Renata estrearam apartamento próprio, o primeiro, sem garagem, mas próprio. Compensara a deficiência da precoce conquista com o providencial aluguel de uma vaga no prédio vizinho(-“Carro meu não dorme na rua. E não é por falta de seguro, não. Na rua não dorme”). Pedro Antonio não parou por aí. Ao completar 10 anos de casado deu à Renata um automóvel zerinho, desonerando-se do desconforto de deixar seu carro com ela quando os afazeres domésticos assim impunham. As crianças, duas, já estudavam em um colégio de elite, para e do qual se deslocavam em uma van com ar-condicionado. Lá, cumpriam várias atividades extra-classe e, três vezes por semana, estudavam Inglês no cursinho da onda.

Mas não é dada a ninguém a chance de se manter impune à progressão na vida. Com Pedro não foi diferente. Sabem como é, a gente vai ganhando mais dinheiro e o dinheiro que ganhávamos ontem vai ficando cada vez mais distante do que a gente passou a desejar por ganhar dinheiro hoje. Vamos realinhando nossas vontades pela possibilidade de realizá-las. Com isso avançamos perigosamente em direção àquela região onde um simples recuo assume contornos de catástrofe. E quando voltamos, por essas travessuras que a vida apronta, voltamos com uma cica intragável na boca. Mas, para voltar, tem de se ir. E Pedro foi.

Dinheiro parado no banco incita o demo. Pedro, ainda que timidamente, passou a ensaiar em suas conversas com Renata um certo desejo de ter “um cantinho sossegado, longe desta loucura que virou o Rio de Janeiro”. Já é sabido o quanto Pedro tinha de escrúpulos por morar em casa ou por comprar um sítio; sabem, aquele lance de sua aversão a cunhados. A idéia do “cantinho sossegado”, porém, passou a perturbá-lo com a força com que nos perturba o vazio de um desejo irrealizado. Já admitia agora comprá-lo, embora cuidadosamente fixasse condições para que o levasse a efeito. –“Quero um lugar ermo, sem telefone, sem vizinho, onde nem celular pegue, onde se possa ficar escondido do mundo e de seus dissabores. E que ninguém, mas ninguém mesmo saiba onde fica”, declinava à Renata. Ela e ele passaram então a procurar o lugar que se encaixasse na lista de restrições de Pedro. Foram à luta.

Alertado por um amigo com quem comentou assim como quem não quer nada sobre um hipotético conhecido que andava assuntando a idéia de comprar uma casa naquelas condições em que ele, Pedro, estabeleceu como requisitos,

nosso projeto de ermitão passou a centrar sua procura em um pequeno e simpático município do sul do Rio de Janeiro, Paty do Alferes. –“É um sonho, um pedaço do paraíso, calmo como o quintal de Adão”, provocava-lhe sem saber o amigo. E Pedro e Renata deram enfim por lá, naquele cantinho de mundo, ornado por lindas fazendas coloniais do ciclo do café e cheio de pequenos esconderijos, todos fiéis à descrição imaginada por Pedro. Lá, compraram uma pequena chácara com uma pequena casa, de onde se podia ouvir o pequeno riacho com seu pequeno barulho típico ao deixar rolar o pequeno volume de água embalando os já agora pequenos sonhos. Minimalista como imaginara Pedro. Estava tão em êxtase pelo oásis que para lá levou até a camisa do Manfra. Ele a imaginara ainda mais protegida pela semiclandestinidade do lugar. Semi, sim, porque além de Renata e Pedro, mais alguém sabia da existência daquele quintal do céu: o alter-ego indiscreto de um Pedro em ascensão social, cioso de sua prosperidade e propenso a reparti-la com o que o cerca. Foi o que se sucedeu. Pedro tomou dois uísques a mais e cometeu a indiscrição que tanto temia em Renata: falou com a mulher de seu cunhado, a cunhada de Renata, sobre a felicidade que estava experimentando aos fins-de-semana. –“Descobri que a vida nos gratifica com tão pouco. Em Paty eu encontrei o verdadeiro sentido do prazer”.

Vivian era suficientemente esperta para entender o regozijo como confissão, e já no carro de volta à casa espetou Euclides: -“Clide, eu sabia que havia alguma coisa estranha, eles andam, sei lá,…diferentes. Eles compraram um sítio. Um sítio, Clide! E é em Paty, em Paty do Alferes, sei que é do Alferes porque tenho uma amiga no trabalho que não pára de falar de Paty. De Paty e de Conservatória, a cidade das serestas. E compraram na maior moita, sem falar com ninguém!”. No outro dia, tão logo deu conta de escovar os dentes, Vivian ligou para Renata e foi entrando de sola: – “Vocês, hein! Compram um sítio e não contam pra ninguém. Pode deixar que eu não vou ficar enchendo o saco pra ir pra lá, não. Eu só queria a consideração de merecer a confiança de ter sabido da novidade”. Renata chapou: -“Como é que ela soube?”, pensou. Mas Vivian lhe poupou o trabalho: -“O próprio Pedro me falou, ontem, na casa de papai. Não adianta disfarçar, já sei de tudo”. Renata balbuciou uma ou outra palavra ininteligível, ganhando tempo para encontrar a desculpa aceitável. –“Vivian, é apenas uma casinha, com dois pequenos quartos e uma areazinha que vamos no futuro transformar em outro quartinho. Né nada demais, não. A gente ia falar, só estávamos esperando a oportunidade”.

Já era o sonho da semiclandestinidade de Pedro.

Pedro gelou ao saber por Renata que cometera a terrível indiscrição. –“ O Edegard é quem tem razão, uísque é fogo, quando você pensa que falta uma dose pra ficar legal, já bebeu duas a mais! Eu não me desculpo, não me desculpo!”. O assunto, com o passar dos ventos, ia saindo aos poucos do repertório familiar, e era sistematicamente rechaçado por Pedro e Renata com um providencial “estamos fazendo umas obrinhas lá”. Mas Euclides vez em quando ameaçava: -“Ainda vou levar uns amigos para um churrasco e uma peladinha em Paty, não é cunhadão?”. Pedro encenava um sorriso protocolar e patético, que tinha apenas o condão de evitar a irrupção de instintos primitivos. Sabia-o que mais dia menos dia seria inevitável a abordagem fatal do cunhado,

deixando-o sem saída para mais uma desculpa esfarrapada. Foi o que um dia se deu. A bordo de um almoço familiar, cuja presença já não conseguia evitar, Pedro, diante do quorum completo, foi lancetado por uma intimação cunhadal: -“E aí? Cês vão pra Paty na semana que vem? Se não forem, dá pra eu ficar lá de sábado para domingo? É que o pessoal da empresa vai fazer um churrasco na casa do Alberto, o Alberto, aquele que outro dia tava lá em casa. Ele tem um sítio em Vassouras, coladinho a Paty. E aí eu tava pensando em ficar lá na casa de vocês, eu e Vivian.”. Não deu pra escapar, dessa vez Euclides o deixara sem saída. Assentiu por assim dizer puto da vida.

Na tenebrosa noite de sábado para domingo, com o cunhado fruindo as maravilhas de seu paraíso particular, Pedro rolava na cama feito um mata-borrão. Nada o fazia garrar no sono. A madrugada se anunciava assombrosa, sendo-lhe possível ouvir à distância o frêmito da presença indesejável. Seu castelo, que o tinha assumido por arcano, estava vulnerável ao espalhafato de um cunhado a quem mesmo não se lhe facultara o arbítrio de escolhê-lo. Era naquela noite torcionário de sevícias cruentas. Sofria a dor do mundo sem o consolo de que a dor do mundo era a dor de todos. A sua dor era tão e unicamente sua dor. Quando o suplício já se lhe fazia crer insuportável, uma terrível lembrança esmagou-lhe o cérebro com a força de compressão de uma prensa hidráulica: -“Meu Deus! A camisa do Manfra. Aquele botafoguense filho da puta, aquele sacana, vai usar a minha camisa, a camisa do Manfra, na pelada de amanhã”.

O oásis, por sua vontade, não tinha telefone. Não havia vizinhos para que recado pudesse ser passado. Nada remotamente podia ser feito para que se evitasse a tragédia do mau uso da camisa do Manfra. Desesperou-se ao ponto de pular da cama às três da manhã assombrado por um pesadelo real. –“Renata! Renata! Eu tenho que ir para Paty!”. Renata acordou assustada: -“Que é isso, Pedro? O que que houve? Alguém morreu, cê ta bem?”. Pedro, aos prantos, correu a esclarecer: – “Renata, cê não tem idéia do que aconteceu. A camisa do Manfra, você não tem idéia do que aquela camisa representa pra mim. Você não estava lá naquela quarta-feira. Você não pegou chuva. Você não viu o Dario empatar pros caras um jogo que tava ganho. Você não viu o Manfra tocar devagarzinho a bola pro gol, quase matando todo tricolor que tava no Maraca. Aquela camisa, Renata, aquela camisa é minha vida. Eu nunca te disse, mas cansei de dormir com ela dentro da fronha, ela me conforta, me inspira, me dá sentido à vida, Renata! Eu não posso deixar aquele puto do seu irmão jogar uma pelada com ela. Eu não mereço isso!”. Renata não estava entendendo xongas, chegou a pensar que Pedro tivesse enlouquecido. Tudo lhe parecia absurdamente sem sentido. E ficou ainda mais quando Pedro trocou de roupa às pressas e gritou da porta, às três da matina: -“Renata, eu vou pra Paty. A camisa do Manfra o Euclides não vai usar. Nem que eu morra!”.

Euclides não podia acreditar no que estava ouvindo. Um som que inicialmente pareceu apenas uma interferência indevida em um sonho bom, um barulho vindo das trevas do inconsciente como a querer espantar a muque o enredo desse sonho bom, foi se revelando cada vez mais eloqüente, mais vivo, mais esporrento. Não, não tinha dúvida, era um louco socando a porta. Socando e chutando. O medo deu lugar ao susto quando reconheceu a voz como sendo do Pedro. –“Que porra é essa?”. Agora o alarido já podia ser traduzido por frases inteligíveis. Agressivas, mas inteligíveis: -“Euclides, acorda, caralho! Acorda, Euclides, tu não vai usar a camisa do Manfra nem por um cacete. Tu tá pensando o quê? Que eu sou babaca? Abre esta porra desta porta!”. Euclides imaginou que Pedro tivesse enlouquecido: -“Que merda é essa de camisa do Manfra? Vivian, o Pedro tá aí, furibundo, dizendo umas coisas sem sentido. Caraca, são cinco da manhã!”. Pedro entrou feito um foguete na casa. Correu para o armário e jogou as roupas de Euclides e Vívian no chão, levantando trêmulo um fundo falso onde repousava tranquila a camisa do Manfra. Tomou-a às mãos e a beijou freneticamente. Euclides e Vivian não estavam entendendo bulhufas. Com a camisa espremida contra o peito, Pedro, já na porta, voltou-se ao cunhado e à concunhada para já agora calmo aquietá-los: -“Euclides, Vivian, a casa é de vocês. A despensa, como vocês já devem ter notado, está cheia, e na geladeira não há nada que seja apenas meu, das crianças ou da Renata. É nosso. Sintam-se em casa!”.

Euclides e Vivian se entreolharam estarrecidos. O dia já estava claro e havia que se tentar mais uma nesga de sono de modo a estar inteiro para a maratona do dia seguinte, com direito a churrasco, conversaria e pelada. Nada disseram um para o outro. Voltaram simplesmente pra cama, e lá ficaram até que o terceiro apito do convite à algazarra soasse.

Pedro chegou em casa por volta das oito. Antes, parou no Bob’s da Avenida Brasil, tomou um ovomaltine gelado, entrou em casa pé-ante-pé para não acordar Renata, que sabe Deus por que havia voltado a dormir. Enfiou a camisa do Manfra entre o travesseiro e a fronha e pensou alto:

-“Daqui, neguinha, você nunca mais vai sair!”. E dormiu o sono dos anjos, sonhando com chuvas divinais e com uma bola que ia se arrastando, arrastando, arrastando, até entrar mansamente no gol do…