Naquela tarde em São Cristóvão

Foto: Arquivo

Tempo sempre é de pensar o Fluminense em sua real dimensão, e de tanta coisa que me apura a lembrança, aquela tarde no bairro imperial de São Cristovão é especial.

 
 
 

Pode parecer estranho, mas a primeira lembrança que vem à cabeça quando se fala em São Cristóvão não são as deliciosas opções de gastronomia e cultura que se concentram – escondidas, umas; escancaradas, outras – naquele enclave de saudade e fruição do Rio de Janeiro. Não é o bom e velho zoológico onde passei dias bons de minha infância que pude estender aos meus filhos. Não é a Quinta e seu palácio, antiga residência da família imperial. Nem bem o acanhado e simpático estádio do São Cristóvão Futebol e Regatas, que pontua como um fragmento de paspatur a inimaginável Linha Vermelha de meus idos de infância. O que me vem à cabeça, na forma de pesadelo e sonho simultâneos, é o estádio de São Januário, cuja localização meu GPS espiritual se recusou por um tempo a plotar no bairro que hoje leva o nome de um navegante português que deu origem a um clube. Clube que se transformou de vítima a algoz em minhas perturbações e êxtases tricolores, mas que hoje voltou ao lugar de onde não devia ter apeado: nosso coadjuvante. O sonho diz respeito ao palco da primeira exibição daquele timaço que ganhou tudo o que disputou enquanto carregava estádio adentro a bandeira das três cores que traduzem tradição.

1983, o ano. O Fluminense estreava no Campeonato Carioca. Não o Carioca das ligas picaretas que asseguram vida longa aos espertos e perplexidade aos sensíveis. Falo do insuperável Carioca, que era o mais importante campeonato regional do Brasil, onde a cena e a contracena eram divididas pelos maiores craques que esta nação de craques produziu tal galinha poedeira. O Carioca era o Brasil. Naquela tarde, estreavam dois garotos que pouco tempo depois se tornariam personagens da história do futebol brasileiro: Ricardo Gomes, 18 anos; Branco, 19. Estreava também uma dupla que marcaria as lembranças tricolores para além da eternidade: Assis e Washington, saídos de uma espetacular temporada no Atlético Paranaense. Estávamos esperançosos, coisas boas por certo aconteceriam. Aquela tarde em São Januário cumpriu o papel de confirmar nossas melhores expectativas. Do outro lado, imaculadamente branco, o simpático e tradicional São Cristóvão, sangrando o triste ocaso a bordo de uma experiência que a todos os amantes do futebol se anunciava como a realização de uma utopia: uma cooperativa de jogadores, sem cartolas.

Com a camisa imaculadamente branca que não admitia — único caso no Brasil — segundo uniforme, estavam ali, no simpático São Cristovão, muitos ídolos em decadência, lutando romântica e bravamente contra a ação do tempo. E pelo prato de comida. Rodrigues Neto, Gil, Orlando Lelé, Rui Rei, Zé Maria – um lateral genérico do Marco Antônio que andou experimentando brilhareco na Máquina do Riva. Outros menos votados engrossavam a lista. Mas entre os de memória cativa estava o Edu, o extraordinário ponta-esquerda que foi à Copa aos 16 anos e integrou o Santos de Pelé, de performances memoráveis. O Fluminense ganhou bem, muito bem, 3 x 0, mas ficou uma cica renitente em minha esperança, ao testemunhar uma valsa triste de despedida, cujos acordes frouxos caíam sobre o gramado com o peso simbólico de um fósforo riscado. Um misto de esperança e fim. E ambas se confirmaram.

Eram tempos em que a opinião falsamente hegemônica não ganhava contornos de verdade pelo ativismo nas redes sociais. Tempos não de redes, mas de rodas sociais, de torcedor zoando e sendo zoado nas ruas, no bairro, no colégio, nos bares. Tempos de torcedor no estádio, desreprimido de suas “obrigações” de lealdade, amando e se indignando por sua expressão livre e espontânea. Daquela tarde restou o alento de poder cravar meus olhos e abrir minha sensibilidade ao primeiro acorde de uma orquestra inesquecível, um dos últimos grandes times com que o Fluminense presenteou uma pátria de apaixonados. É para o ambiente dessas possibilidades que desejamos sempre voltar.

Nunca mais vi o São Cri-Cri jogar. Dali, com o sistema de acesso e descenso, o glorioso alvinegro da Figueira de Melo só voltou aos jornais por uma vez. Pela menção oblíqua ao fato de ter revelado um menino franzino que encantava os velhinhos que ainda guardavam em seu orgulho, com os negativos passando em seqüência, uma história que começou nas regatas que se sucediam quando a Baía de Guanabara ainda dava o ar de sua graça até o entorno da Igreja da Matriz, no Caju. O menino franzino ganhou o mundo e se fez Fenômeno. O São Cristóvão, entre as glórias e o suspiro que fizeram de seu enredo um encadear simultâneo ao do século 20, pontificou e ruiu.

De São Cistóvão Athletico Club a São Cristóvão Futebol e Regatas. Venceu as mais importantes modalidades esportivas, e abraçou de branco — todinho de branco — o troféu de campeão carioca de futebol em 1926. E será sempre lembrado por mais: por contracenar, naquele hoje distante 1983, um momento único da história da mais importante instituição esportiva brasileira, o Fluminense.

Hoje, sempre que tomado de coragem súbita respiro fundo e encaro a Linha Vermelha, sinto-a menos ameaçadora em seu folclore sangrento quando do elevado me pego distraído olhando de esguelha para o velho estádio da Figueira de Melo. E imagino um mundo todo de branco. Sem segundo uniforme.

Um mundo em que o Fluminense se instale soberano, cumprindo seu destino.