Parece ontem o dia em que recebi do Leandro o convite para colaborar com o NETFLU. Pedi uns dias pra responder, já que meu tempo anda cada vez mais miúdo à medida em que avanço pro terço final da vida. Devia ser o contrário. Mas a vida é assim, não se submete a regras. O NETFLU à época andava censurado pelos cardeais do Fluminense, e isso foi determinante para decidir colaborar com o maior site da torcida tricolor. Tempo passou, foi ótimo poder trocar ideias com cúmplices dessa paixão única, mas meu tempo anda me cobrando além do que mereço. A mídia on-line tricolor está muito bem representada por tantos amigos que escrevem com competência desde o universo passional do clube às análises táticas com as quais sempre aprendo.


 
 
 

Mas hoje é meu texto de até breve. Fica aqui o agradecimento à turma do NETFLU e aos que tiveram paciência de ler meus textos, manifestando-se sobre eles generosa ou criticamente. E escolhi para esse ensaio crepuscular escrever sobre o que faz o Fluminense ser substantivo e adjetivo únicos e simultâneos. Matéria e símbolo.

Era um domingo. Morava em Brasília. Era domingo, mas não era um domingo desses domingos que se sucedem vadiamente emulando alegria antes do ocaso aterrador. Naquele domingo, um amigo querido traria pra almoçar conosco o Assis, ídolo eterno, temor em conta de desespero de uma nação de filhos bastardos. Depois do almoço partiríamos para Goiânia, onde o Fluminense estenderia no varal a roupa de sua sua agonia no Serra Dourada, iniciando sua indigesta, improvável, tarefa de fazer daquele 1% a praia do náufrago. Andava por essa quadra de incertezas com pressão arterial aprontando susto. Com quatro filhos pequenos, não me restava nada além da prudência de seguir o conselho médico: “evite estresse”.

Impressionante como as recomendações médicas se descolam do nosso mundo real, mantras que se repetem austeros e impositivos como se fôssemos senhores do que vai nos acontecer cinco minutos depois de deixarmos o consultório, nunca sem antes assinar a planilha do plano de saúde. Muito contrariado, cedi à cautela. Mas a família foi representada naquela viagem de resenhas inimagináveis por minha filha Rafaela, a Rafinha, à época com 14 anos.

Vi o jogo em casa, foi garrado de sofrimento. O Goiás brigava para encostar no G4 e o Fluminense era o fato consumado predileto da imprensa: estávamos irremediavelmente rebaixados. Os goianos fizeram um gol no comecinho do jogo, fizeram o segundo, perderam outros tantos. Aquela derrota era uma tiro mortal nas nossas intenções de permanecer na elite do futebol brasileiro. Veio o alento no finzinho do primeiro tempo. Fred, o Moisés mineiro que viria nos resgatar da escravidão no Egito da segundona, toca para o Mariano, que diminui. Quem sabe? Veio a segunda etapa. Após uma falta sofrida pelo recorrente Fred, Equi Gonzalez, em seu brilho solitário, faz um lindo gol de falta. Dali ao fim do jogo foi sofrimento cavalar. Goiás perdendo gols em fileirinha, o último deles dez segundos antes do apito alentador do fim do jogo.

Um sentimento estranhamente revigorante nascia ali, naquele gramado latifundiário do Serra Dourada, adornado pelo crepúsculo acachapante do cerrado. Não houve tricolor que não visse no soar daquele apito um sinal evocativo da Páscoa redentora.

Rafaela voltou de Goiânia e me encontrou menos amuado; eu vi o sinal. Assis, cansado, ficou no carro para as despedidas. Rafinha entrou em casa e me disse de pronto: “Pai, não vamos cair, não vamos cair”. Olhei para os olhinhos dela impregnados de lividez e esperança e lhe prometi: “Filha, se ganharmos os seis próximos jogos, você vai comigo a Curitiba para o jogo final”. O Coritiba estava 10 pontos à nossa frente e a 5 pontos do Z4. Pareceu-me à hora que o último jogo seria o encontro de um Coritiba garantido na elite contra um Fluminense em desespero ou já rebaixado. Sem riscos de confronto. Mal imaginava o que o destino guardaria num escaninho obscuro.

Faltavam sete jogos. Alguns cascudos, jogos grandes. Precisávamos vencer…todos. Sete, todos. Estávamos na lanterna do campeonato há várias rodadas. Nas resenhas esportivas a única discussão aceitável era sobre quem nos acompanharia na aventura do rebaixamento. Eles não viram o sinal.

Vencemos o Atlético-MG por 2 x 1, o Galo brigando raivosamente pela entrada no G4. Muitos pensaram ser a visita da morte, a ligeira melhora que precede a morte dos pacientes terminais antes do fim sem epílogo. Veio o Cruzeiro. No Mineirão. O primeiro tempo termina com 2 x 0 pra eles. No intervalo, nosso corpo em decomposição se fez acompanhar do féretro feérico dos profetas do então óbvio. Eles não viram o sinal. No segundo tempo, o impossível ia cedendo à imposição do que estava escrito naquele por do sol do cerrado: Gum, Fred e Fred. 3 x 2. Sorte, disseram alguns. Nossa sentença de morte estava cravada para o próximo passo do calvário: Palmeiras, líder do campeonato. 1 x 0 pra nós. Fred. Sentia-se já uma certa inquietação na imprensa esportiva, alguns já fuçando a conveniente rota de fuga de suas convicções. O Fluminense estava marcado pra morrer, mas estava vivo. ]

Eu vi o sinal. Sobrevivemos aos três clássicos. Dos quatro jogos que faltavam, eram dois em casa, dois fora. Ganhamos do Atlético-PR e do Sport, este na Ilha do Retiro, num convincente 3 x 0. Goleamos o Vitória. A imprensa esportiva já não dissimulava o espanto. Intentávamos a mais heroica aventura de recuperação da história do futebol brasileiro. Inversamente ao que construíamos, o Coritiba foi caminhando perigosamente em direção ao Z4. Na última rodada, para não depender de ninguém, o Fluminense precisava empatar para se manter na primeira divisão e empurrar o Coritiba pro inferno. Olhei pra Rafinha e pensei: jogo de vida e morte no alçapão do Couto Pereira, onde já tinha passado alguns momentos tensos em jogos menos fatais. Temi pelo que poderia acontecer.

Nessa altura eu já tinha rasgado há tempos os conselhos do médico. Foda-se, é o coroamento do maior feito épico do esporte brasileiro. Tem mais: prometi à Rafinha. Não perco esse jogo nem por um cacete. Partimos.

No mais, é história.

No caminho do hotel, depois de todas as tensões que passei protegendo a Rafaela contra o alambrado e ficando por duas horas no estádio após o jogo acabar para sair com um mínimo de segurança, disse pra ela: “filha, você me fez ver o sinal, isso irá morrer comigo, você hoje é uma tricolor plena de paixão e de repúdio ao impossível. O Fluminense não só desmoraliza o impossível, por ele tem asco”.

Três dias depois, quando digitava um texto no computador, senti meu braço despencar, não o controlei mais, ficou bobo, inerte. Pensei ser um derrame e corri pro hospital. Não era, felizmente. Mas o feixe de nervos que liga duas vértebras ao plexo braquial simplesmente explodiu. E a única razão plausível foi o nível de estresse a que cheguei na aventura curutibana do Fluminense, aventura que começou com um sinal difuso no borrão exuberante do crepúsculo do cerrado. Foram 15 meses de fisioterapia para recuperar na plenitude funcional o meu braço esquerdo, mas valeu, como valeu.

Recorri ao exemplo do mais memorável feito da história do nosso futebol para deixar claro que não somos iguais. Nenhum tricolor deve aceitar placidamente a commoditização do Fluminense, sua compreensão como apenas mais um grande clube entre tantos. Não, definitivamente, o Fluminense é único.

Dez anos antes da conquista épica do Couto Pereira, percorríamos as mais toscas várzeas do país disputando uma impensável terceira divisão. Mas não disputamos como disputariam os outros com os quais nos desejam comparar. Disputamos tendo à margem do campo um ícone do futebol brasileiro, o treinador que nos trouxe o tetra apenas cinco anos antes: Carlos Alberto Parreira. Diferente, não é? Da terceirona ao Couto Pereira, em apenas dez anos, ganhamos um título nacional, disputamos finais da Libertadores, Sulamericana, fomos duas vezes semifinalistas do Brasileiro, vencemos o estadual. Mas o melhor estaria por vir. Nos três anos seguintes àquele feito de 2009, ganhamos dois brasileiros. E encantamos os mais frios corações com um futebol de craques em profusão.

O Fluminense fundou o futebol profissional brasileiro, foi o primeiro clube a ter um estádio próprio, onde, não por acaso, nasceu a seleção mais vitoriosa do planeta. Mas fizemos muito mais. Em nossos ciclos de reconstrução, repetimos o rito das grande religiões ocidentais, que se universalizaram pela superação da tragédia. Jamais morremos pela decretação da vontade dos que nos receiam ou mesmo do destino, com quem brincamos de provocar.

Volto ao meu estado intransitivo de torcedor. Vivendo cada minuto de nosso roteiro cósmico com a intensidade uma paixão arrebatadora.

E o que é o torcedor?

Respondo como respondi no final de meu prefácio ao livro imperdível do Marcelo Meira, “As Laranjeiras Imortais”:

“O que é o torcedor? O que somos nós? O que é que eu sou?

…parideira que esquece a dor do parto sou possesso e fidalgo algo que não sei antro da lei bizarro maior-de-todos estendido contra a massa disforme enorme não dorme acorda a horda cordeiro e onça gentil é a puta que o pariu abraço o próximo o antes quartel de abrantes erro berro cerro os punhos maios e junhos xingo e vingo quarta e domingo sonho com o passado e retardo ou antecipo o futuro a bel prazer desjuro chorando não peço perdão perdôo tudo estudo e esqueço jogo-me no chão e dou a volta olímpica em cada escuro do meu quarto e parto para exatamente onde estava…

O que é que eu sou?

Sou tricolor de coração, sou do clube tantas vezes campeão!

Poorraaaa!!!