É estretcho mas é gostoso

Recém-separado de Aline, Estevão caiu na esparrela que leva tantos a se imaginar estuário do prazer do mundo. Neguim deixa a mulher ou por ela é deixado e lambe os beiços na base do mundão-guentaê-que-eu-vou-botar-pra-quebrar. É viagem de volta certa. Estevão, no entanto, demoraria a provar do gosto que embala a insônia dos casanovas frustrados. Antes, pé na estrada, e o mulheril que segure as pontas. Primeiro passo foi marcar viagem. Começar sua carreira de conquistas memoráveis fora da circunscrição geográfica de Aline era prudente. Depois, com o tempo a passar o tempo que resta ao tempo passar, arriscaria umas investidas em seu território. A oportunidade viria naturalmente, com os amigos já acostumados à sua condição de solteiro à caça. Viajar pra onde? Não foi difícil para Estevão decidir por onde começar sua, pensava, arrebatadora carreira de conquistador: Salvador. Lembrou-se das vezes que por lá esteve com Aline. Das lindas morenas de pernas torneadas a cinzel delicado, musculosas na medida certa. Aquele acento sensual nas vogais abertas, o requebro serpenteado, os quadris generosos. O jeito dissimulado de parecer submissa pelo uso recorrente de diminutivos. Estevão já se via puxado pelo braço em direção às águas de azul profundo da praia do Forte ao som de um “vem painho” irresistível. A coonestar-lhe a decisão, a lembrança de que o Fernando, amigo de infância, mudara-se para Salvador fazia cinco anos.

 
 
 

Fernando foi militante do movimento secundarista quando o bicho pegava nos anos 60 e 70. Fez as viagens protocolares de uma geração à procura da transcendência a qualquer preço. Ficou por um bom tempo em algumas delas. Usava sandálias e jeans poído, ouvia rock progressivo e lia vorazmente os ícones da esquerda de engajamento compulsório. Esteve em Ibiúna, tomou porrada de meganha, e entrou de cabeça na política universitária. Agregou-se em tempos de proscrição à extensa coleção de ex-presidentes da UNE. Formado em economia, foi enviado em missão partidária à Cuba, de onde voltou mudado. Pisou no chão do velho Galeão e bradou aos ilhéus de Governador: “Nunca mais uso essa porra. Eu quero é mais!”. Os gritos se fizeram acompanhar de um lançamento olímpico de sandálias. “Comunismo é o caralho, eu quero é trabalhar na Bolsa”. E assim Fernando caiu no mercado financeiro, onde ganhou dinheiro que ladrão fazendo serão não dá conta de acabar. Enriqueceu e quebrou por vezes de muito. Quando na boa, gastava sem remorso. Caía no mundo com fome ruandense. Passou meio Rio de Janeiro na cara. Dormiu sem exceção com todas as capas das revistas do ramo. Quando quebrou pela última vez, juntou o que tinha e foi pra Trancoso abrir um quiosque na areia da praia. Deixou não apenas o Rio e os amigos que amava, mas um rastro de cheques sem fundo e inscrição pomposa na nominata no Serasa. Estevão recebeu notícia dele pelo Roberto, um amigo comum: – “Estevão, o Nando não toma jeito. O cara arrebentou em Trancoso, o quiosque dele saiu até na Caras. E tu precisava ver a gata que tava com ele na matéria. Caraio, Estevão, um avião”. Estevão soube por outro amigo que Fernando se mudara para Salvador, pelo menos há uns dois anos, e abrira um restaurante-boate no AeroParque.

Tricolor roxo, Estevão juntou o útil de um jogo do Fluminense no Barradão ao agradável de rever Fernando e cair na gandaia. “Quantas gatas o Fernando deve estar pegando?”, só pensava nisso. Realmente, não havia melhor lugar para inaugurar com garbo a era de ouro da solteirice de Estevão que a Salvador do Fernando. Depois de uns quatro ou cinco dias, Estevão enfim conseguiu falar com o Fernando:

  • Grande Fernando, o Fluminense joga domingo contra o Vitória aí em Salvador. Vou ao jogo, e tava pensando em te encontrar no sábado ou no domingo antes do jogo. Se não der pra ser no sábado, vou esticar com uns malucos tricolores aí da Bahia.
  • Sábado à noite tenho uma obrigações, amado. Mas domingo, claro, Estevão. Vou te levar a um lugar inesquecível. Prepare-se, vamos ver muita gente.

Estevão estranhou aquele “amado”, mas imediatamente imaginou-se numa orgia hedonista, baianas de biquininho na proa de uma lancha generosa a singrar as águas calmas da Baía de Todos os Santos. “Esse Fernando não muda, é o comedor de sempre. Lá pelas três da tarde, dou um tempo, vou ao jogo, e volto pra festa. Seguraê, Bahia!”.

Sábado à noite, Estevão foi ao Olodum, no Pelourinho, levado pelos malucos tricolores. O assunto, como é de se esperar em encontro de torcedores apaixonados, era Fluminense entremeado de Fluminense, mas foi a tamborzada gritar alto para o Estevão ensaiar uns requebros. Conteve-se de repente, para espanto dos amigos. “Moçada, vou me segurar. Amanhã é esbórnia, é balada grossa. Vou sair com o Fernando, com o Fernando! Tenho que me poupar. Com o Fernando não tem erro: é putaria de primeira”.

Exatamente às oito da manhã o telefone do quarto do Estevão tocou. Era o Fernando. No horário combinado.

  • Grande Estevão, tá pronto? Vou passar por aí em vinte minutos.
  • Pode vir, Fernando, tô que não me aguento, mermão.
  • Você vai gostar – encerrou secamente Fernando.

O reencontro foi festivo como são os reencontros de dois velhos amigos. Relembraram histórias com incrível riqueza de detalhes. As viagens que fizeram, os baseados que fumaram no banheiro do colégio, as bolas de gude que jogaram no chão para fazer escorregar os cavalos dos meganhas, as namoradas, as leituras de Gramsci, e por aí foram conversando. Fernando foi pontual, e tão logo Estevão entrou no carro, correu por dizer: “Grande Estevão, vamos partir pra Mata Escura”. Aquele nome Mata Escura incendiou os hormônios do Estevão: “Mata Escura, vai rolar, esse Fernando é foda”, pensou.

O que Estevão não esperava foi uma conversa estranha que Fernando ia encadeando em tom de cantilena, como a cooptar Estevão para uma nova atitude, resultado da nova atitude que ele, Fernando, ia deixando claro que havia assumido. “Estevão, fui tocado pela fé, vivi uma vida de exageros, de pecados, passei da conta, me afastei de meus valores cristãos. Hoje você terá a chance de ver pessoalmente o quanto a palavra de Deus modifica as pessoas, produz milagres, salva os enfermos e pecadores”. Estevão gelou. “Mas nós não vamos pra tal de Mata Escura?”. “Vamos, claro, é onde fica a Penitenciária Lemos de Brito. Lá eu faço um trabalho de evangelização de detentos, é bonito, você vai gostar”. A primeira reação do Estevão foi pensar em mandar o Fernando à merda e fazê-lo parar o carro imediatamente, mas pensou nos anos de amizade, na história entre os dois. “Fico um pouco lá, satisfaço o amigo e corro pro Barradão a tempo de ainda beber umas com os malucos. Dancei na esbórnia”.

Chegando à Lemos de Brito, com os celulares já devidamente deixados na triagem, Estevão reparou no tratamento diferenciado que o já agora Bispo Fernando recebeu dos carcereiros e de todos os outros funcionários do presídio. “Por favor, bispo, venha por aqui, já estão esperando pelo senhor”. “Obrigado, amado”, respondia sempre o Fernando. E ia apresentando Estevão a todos com que cruzava.

O grupo de detentos evangelizado pelo bispo, numa primeira estimativa de Estevão, reunia uns vinte crentes, alguns deles com um passado pesado de crimes, segundo o próprio Fernando confidenciara a Estevão enquanto iam percorrendo os corredores sombrios da Mata Escura. Entre eles, o mais perigoso, um negão com quase dois metros e 150 quilos, o Jefão. Jefão tinha um histórico de ataques sexuais e uma boa dezena de gente passada a defunto. Era o xerife do presídio, e só a conversão recente o acalmara um pouco.

Fenando começou a peroração: “Amados, hoje venho aqui mais uma vez para lhes trazer uma palavra de conforto e esperança, uma palavra que cura e aponta um novo caminho, que nos dá luz e saída para nossas aflições, eu trago a palavra sagrada do Senhor. Hoje estou particularmente feliz, por poder dividir essa bênção com um velho amigo, ainda não convertido, mas é questão de tempo, não é Estevão?”. Estevão empedrou. Estava literalmente encagaçado, praguejando a maldita hora em que pensou estrear a solteirice em companhia do velho amigo e comedor Fernando. Ainda assim assentiu com um sorriso amarelo opaco. Fernando, ao fim de cada leitura bíblica, ou mesmo de palavras suas de conforto e orientação, terminava sempre com uma conclamação: “O caminho de Deus?”, ao que todos em uníssono respondiam “É estretcho mas é gostoso”. A cada estretcho pronunciado pelo grupo, Jefão olhava para Estevão com um olhar que a Estevão semelhava ameaça ou, o que é pior, desejo. Estevão suava frio e intensamente. E vinha mais um “É estretcho mas é gostoso”, e mais uma olhada do Jefão, e mais suor do Estevão.

Àquela altura, Estevão só pensava no jogo do Barradão e em como se livrar daquela roubada, que desculpa poderia entabular sem que parecesse àqueles crentes em conversão uma ofensa ou mesmo um preconceito. “Que merda que eu fui arrumar, só falta perder o jogo, cacete!”. Veio-lhe na cabeça uma solução desesperada. Sem celular, não lhe restaria nenhuma saída que não fosse um grande ato histriônico, um gesto teatral arrebatador. E foi o que ele fez. Jogou-se no chão e gritou: “Insulina, insulina, meu remédio pra diabetes, sou diabético, posso morrer, salve-me, Fernando, salve-me!!!”. O que Estevão não contava é que naquele presídio mal-ajambrado tinha umas ampolas de insulina. “Traga agora pra ele”, ordenou o bispo ao carcereiro mais próximo. “Puta que o pariu, como é vai ter insulina nesta merda!”, murmurou um Estevão em apuros. Acorreu de chofre um adendo que o salvou: “É diabetes tipo 2, tipo 2, posso morrer aqui, insulina não basta, tem que ter o remédio”. Aí não houve jeito. Estevão foi retirado do presídio e instalado em uma ambulância que já havia sido prudentemente convocada para atender ao amigo do bispo. De dentro do presídio, Fernando ainda gritou: “Deem-me notícias dele assim que for atendido, não deixem de me ligar!”.

Já dentro da ambulância, Estevão se desvencilhou do incômodo avental de doente e gritou pro enfermeiro: “Manda parar essa merda, me soltem aqui, quero ir pro Barradão, vim pra Salvador pra ver o Fluminense, me larguem porra!!”. O enfermeiro prontamente tratou de frustrá-lo: “De jeito nenhum, o bispo pediu que lhe deixássemos no hospital e é o que vamos fazer”. “Fica perto do Barradão?”, apelou Estevão. “Uns 20 minutos de táxi”. Mal a ambulância parou na porta do hospital e abriu a porta para a maca ser retirada, Estevão deu um pulo olímpico e saiu correndo pelo pátio. De lá foi fácil acessar a rua, onde um táxi providencial passava. “Para, para, porra!!”. Estevão pulou no taxi e suplicou: “Parte pro Barradão, mermão, faltam dez minutos pro jogo, voa, amigo, voa”. O taxista, que para sorte do Estevão era torcedor do Bahia, pisou fundo, e deixou Estevão na porta do estádio do Vitória com 15 minutos de jogo. Mas foi o suficiente para Estevão testemunhar o mais lindo gol do Thiago Silva em sua memorável passagem pelo tricolor verdadeiro. Um balaço numa cobrança de falta lá da intermediária. A bola saiu como um foguete desesperado, aninhando-se no ângulo à direita do goleiro com a força de um míssil. O jogo terminou 2 x 2, mas isso é muito menor que o gol imortal do Monstro.

Estevão antecipou para domingo sua volta ao Rio. Estava marcado pra segunda, já que esperava continuar na noite de domingo a farra que imaginara começar pela manhã sob os auspícios do comedor Fernando, agora um recatado bispo evangélico. No avião, em seus delírios, alternava a imagem de sonho da bola do Thiago Silva estufando o ângulo impensável com a força de uma bala, com o pavor da lembrança do olhar ameaçador do Jefão a cada ”É estretcho mas é gostoso”.

Chegou no Rio e correu para o conforto e segurança de sua casa.

Três meses depois, voltou pra Aline.