Iolanda

O ano era o de 1983. Embalados pelo sonho das Diretas, vivíamos os últimos dias da sucessão ininterrupta de generais que nos governavam há 20 anos. Acumulamos por esse tempo toda a sorte de frustrações, horrores e traumas, e vimos uma geração de jovens idealistas e ingênuos, manipulados por lideranças presas à análise equivocada de suas chances, sair diretamente do clima de Woodstock para a guerrilha. Jovens duramente abatidos pela violência boçal da repressão, o que era de se esperar. O medo ia lentamente cedendo lugar à esperança-oxigênio.

 
 
 

O país inteiro mobilizou-se pela reconstrução democrática e vivíamos um excitante momento de felicidade com a volta dos exilados – irmãos reintegrando-se à família – e a família foi às ruas exigir a aprovação da Emenda Dante de Oliveira, a das Diretas Já! Lideranças civis, artistas, intelectuais, subiram ao palco das imensas manifestações populares que injetavam uma credibilidade jamais vista a um movimento cívico que amalgamou o sentimento de nacionalidade fraterna. Um milhão na Candelária! Um milhão no Anhangabaú!

A anistia havia se completado trazendo um clima de congraçamento no reencontro de brasileiros com sua pátria e pavimentando o caminho para um presidente civil eleito pelo voto popular. A censura relaxava até sua total extinção, dando passagem a toda uma produção literária que trazia à tona a verdade dos “derrotados”, daqueles que não nos era permitido ouvir e ler. A MPB acalentava a comoção nacional com as mais lindas canções, já não mais necessariamente engajadas. Uma delas, especial, sequer inteiramente brasileira. Uma versão do tricolor Chico Buarque para um clássico de Pablo Milanés. Foi a canção que pela primeira vez ouvia quando, compartilhando o choque de todos os brasileiros que irrespirando acompanharam a votação da Emenda das Diretas no Congresso Nacional, tomei conhecimento de sua reprovação. Chorei o choro mais estúpido, a lágrima derramada por um misto de vergonha e tristeza, o choro por um país que sangrava impotente pela torpeza de sua elite política.

Ouvíamos falar da música da Ilha, mas só tínhamos acesso até então aos merengues e salsas bem comportadas, a la Guantanamera, que depois de fazer a trilha da Havana de Fulgencio e da máfia predatória, compunham o repertório das casas noturnas de Miami e daí ganhavam o mundo ( a genial geração inventora do “Son” ainda não tinha sido redescoberta por Ry Cooder e Win Wenders no também genial “Buena Vista Social Club”). Havia muita curiosidade pela música cubana pós-revolucionária, e a imaginávamos como hinos panfletários, letras escancaradamente conclamatórias à causa da Revolução. Arquétipo incensado pelo tambor da argentina Mercedes Soza a gritar o sofrimento da América Latina e a bradar “volver a los 17”. De repente, a primeira música cubana que chegou chegando aos nossos ouvidos composta por um artista notoriamente castrista, e vertida para o Português pelo Chico, era uma pungente canção de amor, arrastada em uma cadência triste e emocionante. Acabara de receber a porrada da votação da Emenda Dante e estava ainda tonto pela revelação surpreendente de um panfleto às avessas.

“Esta canção/
Não é mais que uma canção/
Quem dera fosse uma declaração de amor/
Romântica/
Sem procurar a justa forma/
Do que me vem de forma assim tão caudalosa/ Te amo, te amo/
Eternamente te amo/
Se me faltares/
Nem por isso eu morro/
Se é pra morrer/
Quero morrer contigo/
Minha solidão/
Se sente acompanhada/
Por isso às vezes sei que necessito/
Teu colo, teu colo/ 
Eternamente teu colo/

Quando te vi/
Eu bem que estava certo/
De quem me sentiria descoberto/
A minha pele/
Vais despindo aos poucos/
Me abres o peito quando me acumulas/
De amores, de amores/
Eternamente de amores/ 
Se alguma vez
/ Me sinto derrotado/
Eu abro mão do sol de cada dia/
Rezando o credo/
Que tu me ensinaste/
Olho teu rosto e digo à ventania/
Iolanda, Iolanda/
Eternamente Iolanda/
Iolanda/
Eternamente Iolanda/
Eternamente Iolanda”.

Tempos depois, com um pouco mais de atenção, assistia à Iolanda debochadamente se transmutando em um movimento imaterial de barbudos descendo a Sierra Maestra, e vi que a romântica e frágil mulher da letra de Chico e Milanés era dissimulada como todas as mulheres. Iolanda era exatamente a mulher-Revolução. Mas pode ser todo bem imaterial que amamos, como o Fluminense, por exemplo. Experimente substituir na letra Iolanda por Fluminense. Tudo se explica sobre o por que de o amarmos tanto.

Pensei sobre o quanto o amor é revolucionário e sobre o quanto o amor carregado de indignação pode chutar o rabo do mundo. Se para certo ou errado, vai depender de quem analisa. A frase já cansada de Che “hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamas” foi muitas vezes o slogan atenuante para alguns atos de barbárie que caberá à História julgar, mas ela sempre será definitiva quando se pensar no amor como meio de cultura para a transformação. Indignação e amor, sentimentos ilusoriamente contraditórios. Revolucionariamente complementares.

Hoje, quando mais uma vez entrarmos em campo pela estrada perigosa da Copa do Brasil, todos nós nos encontraremos “eternamente Fluminense”, e a ele nos entregaremos pela paixão que vem assim “de forma tão caudalosa”.

Indignação e amor. É só o que o Fluminense precisa. É tudo o que o Fluminense precisa.

Porque “se é pra morrer, quero morrer contigo”.