Num trecho do seu definitivo Febre de Bola, Nicky Hornby descreve a luta interna que travou ao tentar reprimir sua paixão pelo Arsenal quando deu início à sua carreira acadêmica e a seu projeto intelectual. Hornby se apaixonou pelo Arsenal cumprindo o mesmo itinerário de tantos meninos ingleses e do mundo. Morava em Highbury, próximo ao Arsenal Stadium, e brincava, como brincavam os meninos de sua infância, na rua, que é lugar de menino saudável brincar. A paixão se dava pela proximidade e pela cumplicidade dos amigos. O clube era a expressão da territorialidade do bairro, da gostosa sensação de pertencimento que se dá entre a criança e o mundo lúdico que a cerca. Depois, quando adultos, vivemos dessas lembranças, delas não nos libertamos pela força de sua influência na construção da nossa personalidade. Nicky Hornby integra uma geração que renovou a linguagem da literatura e cinema ingleses. Estreou com o ótimo Alta Fidelidade, e se consolidou como um dos mais influentes roteiristas da Inglaterra do fim do século passado. Um escritor cultuado no ambiente da literatura pop. Hornby pensou ser fácil, por preconceito cretino, livrar-se do inlivrável, a paixão pelo Arsenal. Em vão. Numa de muitas idas e vindas da universidade onde dava aula ou dos ritos de sua agenda de intelectual, após meses de abstinência no velho estádio de Highbury, Nicky Hornby ouviu à distância o rumor inconfundível dos gunners incentivando o Arsenal. Não pensou duas vezes: mandou à merda seus preconceitos e correu pra dentro do estádio, com a alegria e segurança de uma criança assustada voltando ao útero. Ali era seu lar, sua vida, tudo o que ele se tornou ali se representava.

Nada mais verdadeiro. Na boa lição de Tolstoi, para contar o mundo, comece por sua aldeia. Nada mais universal que a tragédia humana dos pequenos mundos. Do nosso bairro, da nossa escola, da nossa rua, da nossa família. O mundo que nos toca resume o drama do universo que não tocamos. Assim nasceram as paixões pelos clubes, muito antes de o futebol se tornar um fenômeno global e uma atividade econômica poderosa. Mas sabemos ser o futebol muito mais que um fenômeno global e um negócio de monta. Há tratados e mais tratados derramados sobre as relações entre o futebol e o conjunto de crenças e valores sociais. Não se trata de esgotá-los ou repeti-los. É mais simples: o futebol é a expressão superlativa de todos os nossos defeitos e virtudes, o ambiente onde somos santos e bestas, em que linchamos nossos superegos a golpes de exagero passional. Combinar os vínculos que nos unem aos nossos mundos locais com a possibilidade da catarse eufórica fez do futebol o que ele é hoje: mais que um jogo, mais que um esporte, mais que uma arte, mais que uma religião.

 
 
 

Os clubes de futebol nascem nos bairros, e esses bairros pertencem a uma cidade. A paixão nasce no entorno desses clubes e se expande por seus referenciais simbólicos e desempenho esportivo. Todos os grandes clubes do mundo nasceram assim. Espelham e reforçam o significado dos bairros e cidades de sua origem e se tornam universais. Barcelona, Real Madri, Bayern Munique, Milan, Paris St Germain, Atlético de Madri, Manchester United e City, e muitos, muitos outros. Expressam cidades, se ligam a elas por seus valores culturais e simbólicos. Só assim ficam prontos para se tornarem imensos.

Fui sócio do Fluminense por boa parte de minha infância e adolescência. Vivem intensos em minha memória os momentos em que nos coletivos de Álvaro Chaves os meus maiores ídolos estiveram ao meu alcance. Amava o Fluminense pela gigantesca carga simbólica de suas referências: o estádio em que nasceu a seleção brasileira, a linda sede social com seus míticos vitrais, o exemplo de disciplina e organização. São valores que se deram localmente e se tornaram universais. O Brasil nos abraçou no compartilhamento da paixão e nos tornamos um patrimônio do país. Qualquer pessoa que se declarasse tricolor, carregava com ele, acima de classes sociais, o orgulho de pertencer a um grupo que reunia as melhores qualidades associadas à nossa história.

A partir de Laranjeiras, o futebol carioca foi se expandindo pelos bairros, dando origem a clubes tradicionais como Madureira, Olaria, Campo Grande, Bonsucesso, São Cristóvão, Bangu. Havia os clubes de regata, que só se tornaram clubes de futebol pela presença inovadora do tricolor de Laranjeiras. Nosso hino fala em três cores que traduzem tradição. Tradição é a morte do efêmero, resiste inabalável a guerras, revoluções ou avanços tecnológicos. Somos o fundador da tradição no futebol brasileiro. E somos dali, de Laranjeiras, do nosso templo Álvaro Chaves, para muito além das disputas mesquinhas que pautam o clube social.

Hoje, quando entrarmos no Maraca, depois de tanto tempo, nossos corpos estarão lá, mas nossas almas permanecerão nos referenciais históricos que nos forjaram. Estarão em Laranjeiras. No centro do gramado de Álvaro Chaves. Colados às lembranças que nos fazem ser o que somos. Pois se um dia alguém quiser matar-me de amor, que me mate em Laranjeiras.

Boa sorte a todos nós.