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Andam vicejando por aí, o que é um bom sintoma, várias revistas especializadas em História do Brasil. É só dar uma espiadela nas bancas de nossas esquinas de cada dia e encontrar, ao lado de glúteos generosos e bíceps anabolizados (há quem goste), dezenas de publicações que nos trazem Cabral e Pero Vaz em suas capas sem que necessariamente estejam nus, ressalte-se. São muitos os historiadores que andavam por aí pesquisando e pesquisando, a consumir suas bolsas de pós-graduação com a perspectiva de verem suas teses, antes limitadas ao restrito circuito das bancas examinadoras, acessíveis agora aos gentios. O contraste é que caminhamos perigosamente para um país com o mesmo número de doutores e analfabetos. Agora esses historiadores saltam do anonimato das universidades para o proscênio da vida estelar, desfilando seus saberes ao lado da Anita, Bruna Marquezine, Wesley Safadão, das reflexões construtivistas de intelectuais do peso de um…putz…Gilberto Braga. Se o mundanismo tem a sua Caras, nossa história que tenha as suas. Bom para o país que não nos fechemos em manuais de autoajuda, masturbação e adulação invejosa das celebridades.

 
 
 

Uma dessas boas revistas de História é a “Nossa História”, publicada mensalmente pela Biblioteca Nacional – espero que ainda circule. Numa edição de um antigo dezembro, a Nossa História cravou na capa chamada de extensa matéria sobre o futebol brasileiro e suas relações com nossa cultura, política, vida social e tudo o mais, numa linguagem de tratado antropológico. Abordou as origens do clientelismo que levou futebol e política, no Brasil, a se promiscuírem escancaradamente, e servirem de base para organização cartorial e impenetrável que ainda domina as relações de poder no Capitólio do nosso esporte-símbolo. Tratava a matéria do uso fisiológico despudorado dos êxitos de nossos canarinhos em terras d’além mar; da confusão sobre pátria e esporte tão bem representada pela expressão pátria-de-chuteiras; investigava o elo de mobilidade social permitido pela carreira de jogador, o que enseja a construção de uma mitologia própria; e por aí ia, historiando e sistemizando as ideias naquele dialeto típico que protege a Academia de qualquer risco de ser entendida e daí posta em dúvida.

Vamos ao que interessa. No corpo da matéria, composta de quatro submatérias, ainda que com as restrições de espaço de uma revista, muito da história de nosso futebol foi meticulosamente estudado e retratado. Traçava um panorama muito bem articulado do futebol brasileiro no século XX. Dei-me o trabalho de contar as referências aos grandes clubes brasileiros, um indicador indiscutível de suas importâncias específicas. Adivinhem qual o mais citado? Mais uma chance. Claro que meu sagaz leitor acertou em cheio: o Fluminense, obviamente. São expressivas seis citações, contra duas de Botafogo e Santos, estas graças aos mitos temporais Pelé e Garrincha. O Botafogo beneficiou-se particularmente por integrar a matéria uma reportagem duplamente assinada pelo Armando Nogueira e mais um jornalista. Onde estiver o Armando Nogueira, lá vem aquela história babenta do anjo-de-pernas-tortas, que já nos saturamos de ouvir e ler. O botafoguense é um eterno nostálgico, refém de um lapso temporal. O Flamengo, tratado pela imprensa esportiva como o “mais amado do Brasil”, ficou com uma minguada citação solitária, e ainda assim por conta da cisão do Fluminense, que lhe deu origem, em forma de Caixa de Pandora. Seis citações! Todas ressaltando a convergência única entre a nossa história e a história do futebol brasileiro. A ampla matéria só reforça o que eu canso de dizer a mim mesmo em minhas especulações confessionais: o Fluminense é a maior instituição esportiva brasileira do século XX. E sendo a maior instituição esportiva do país que papou quatro copas desse século, quem terá coragem de negar o peso do Fluminense como uma das mais importantes instituições esportivas do mundo? Alguém se apresenta? Sabia que não.

Infeliz daquele, no entanto, que não se reconhece na sombra que projeta. O Fluminense é hoje uma imensa sombra projetada por almas franzinas. Falta-nos despejar no acostamento de nossos anos trágicos qualquer complexo que impeça a retomada de nossa vocação eterna para a glória, para a liderança de todo avanço nas instituições do futebol brasileiro. Falta-nos fazer valer a força da tradição, escorarmo-nos nela como aval incontestável de nossa grandeza. É difícil para as novas gerações perceberem o tamanho real do Fluminense, já que, no fim do século, fomos assacados pela ação sistemática do conluio da má-fé com a incompetência. E pagamos um alto preço por isso. Enquanto não nos livrarmos da abnegação voluntarista, da ação nociva dos que se julgam donos de uma instituição do tamanho do Brasil; enquanto não nos reconhecermos em nossa importância, sem auto-piedade ou conformismo, estaremos condenados a um pálido papel diante de nosso peso histórico. O Fluminense nasceu para brilhar. Para ser o contraponto da iniquidade, da torpeza, da ignorância. Não fosse esse sentimento de desconfiança em relação ao nosso peso histórico, ao irrenunciável papel de instituição-líder, à nossa capacidade de renovar nossa glória vocacional, e estaríamos em lugar bem melhor. Falta-nos hoje compromisso com uma mentalidade vencedora, eixo de nossa história. Podemos começar por divorciar radicalmente a administração do futebol da condução do condomínio, com seus rapapés e cartórios familiares num mundo em que rapapés e cartórios soam tão bolorentos e autoritários quanto segregar acesso em elevadores sociais. A luta pelo poder amesquinha, faz aflorar a porção canalha que habita em muitos e é mantida latente sob frágil censura ética. Em sequência, profissionalizar a gestão do futebol de maneira ainda mais radical, acima de grupos que se guetizam para se manter influentes no microcosmo. Só assim criam-se as condições para a formação de um meio de cultura fluido aos investimentos fundamentais na formação de um grande time, nas divisões de base e nas relações com o torcedor-cliente, nosso maior patrimônio.

E ter coragem de se recusar franzino, de se assumir imenso e eterno, de se reconhecer História.