“Nada se tornará claro aos que se pensarem sãos”

 
 
 

Tom Bence, dramaturgo irlandês, autor dos clássicos “Os Urans guardam segredos” e “Memorial de Leonardo Moura”

Quando eu vejo instalados no Fluminense torcedores que até há cinco dias circulavam pelas arquibancadas em estado de analfabetismo científico-esportivo, e hoje desfiam teses ascéticas com a fertilidade de coelhas, eu me assusto. Era gente que até há pouco carregava uma ingenuidade de Cândido, de Voltaire, alices felizes no país maravilhoso da ignorância. E aí penso: o quanto de loucura deve temperar a boa norma de gestão dos grandes clubes? O quanto a força da tradição deve impulsionar e justificar simultaneamente atitudes que pareceriam insanas sob a ótica funcional dos tratados e compêndios? Não sei. E não saber, em futebol, é uma das mais respeitáveis formas de saber. Mas respeito quem sabe, e respeito mais ainda aqueles que, sabendo, deixam a paixão gritar para além dos interesses pessoais dissimulados pela abnegação de discurso, os que se impulsionam pela paixão sem fidelidade a grupos ou formas de poder.

Loucura?

Não é de boa providência temer a loucura. Antes de a sociedade confinar os loucos, submetendo-os à brutalidade dos tratamentos manicomiais, nossos bons amigos vagavam pelas ruas com seu repertório de – para nós – extravagâncias, ou, no caso dos ricos, zanzando por suas casas a desfilar excentricidades. Há casos e mais casos de loucos famosos, muitos deles atores da crônica social, como Lima Barreto, que experimentou a internação entre uma e outra obra-prima de sua lavra. Houve Newton, van Gogh, Mozart, Cervantes, John Nash, inúmeros loucos geniais. A loucura é provocante e eterna, assombra e aconselha. A loucura logrou vencer a rigidez farisaica da Inquisição, poupando do fogo e do óleo quente até alguns desmiolados que enforcavam estátuas de santo e se masturbavam nas igrejas. Pouco, perto do grau de prevaricação dos padres da época. Mas sobreviveu vigorosa em sua inquietude e pavor.

Há mesmo muitos traços de afinidade entre os gênios e os loucos, e não é rara a capacidade de alguns verem, sob o manto das sombras e do absurdo, a vida que não vemos, de provocarem no senso comum o espanto que antecede o ódio e a segregação. Eu mesmo ainda peguei um Rio em que um ou outro louco irrompia na cena urbana, anunciando-nos sua verdade difusa e estarrecedora. O Gentileza, nas barcas da Praça XV, e o Ministro, na avenida Rui Barbosa, onde morei, são exemplos. O Ministro era geralmente sóbrio e pacato. Dormia nos terrenos baldios do Flamengo e Botafogo, e perambulava do Morro do Pasmado ao Monumento aos Pracinhas. Carregava nas mãos a muda de roupa que lhe ensejava passar de plebeu a nobre e de nobre a plebeu. Ambas esfarrapadas, embora uma se destacasse da outra pelo providencial paletó de smoking que se esvaía em tiras e pelo chapéu roto. Quando tomado de cólera, apedrejava os ônibus que passavam pela Rui Barbosa, preferencialmente os Camões, que faziam a linha Estrada de Ferro – Urca. Ministro lhes sabia de cor os números de identificação, números que anunciavam sua ira santa. “345, lá vai pedrada!”. Os Camões, cujo desenho peculiar de sua carroçaria, com uma das extremidades precipitadas à guisa de coquipite do motorista, traziam um ar de nostalgia ao futuro anunciado pela parafernália tecnológica que entrava por intrusão em nossas vidas. O Ministro só atirava as pedras quando em traje de passeio. Quando enfatiodado, nos surtos mansos, o Ministro cortejava educadamente as mulheres do bairro, sem nunca antes cuidar de avisar: “Vizinhas, acautelai-vos!”. É por estas e outras que pelos loucos tenho afinidade.

Não é que os torcedores apenas cerebrais não possam aqui e ali aparentar um mel coado de loucura, mas são antes de tudo cretinos, quando se escravizam pelo método e represam a emoção preconceituosamente. Vejam o caso do Tiago, um conhecido meu, tricolor, completamente tomado da obsessão estatística. Sua desgraceira deu as caras quando ganhou de sua mulher, Marisa, um lépi-tópi encardido, ao concluir um mestrado. Com a trapizonga ao alcance das mãos, Tiago passou a controlar todas as suas tarefas diárias. Contava os degraus das escadas e os segundos com que os consumia, media o tempo de seus deslocamentos e transformava sua série histórica em gráficos coloridos. Regulava a ingestão de carboidratos por uma planilha do Excel, controlava os intervalos em que o elevador se apresentava à sua pressa. Enfim, passou a viver baseado em uma dieta rigorosa de números e tabelas.

Uma certa noite, Tiago, em estranha circunspecção, revelou à Marisa ter algo grave a com ela tratar. Marisa assustou-se com o tom dramático com que Tiago apresentara-lhe a intenção. “Marisa”, iniciou Tiago. “Estive fazendo uns cálculos sobre nossa vida sexual e cheguei a preocupantes conclusões. No último ano tivemos uma média de duas relações por semana, sendo 30% delas aos domingos. Nas quintas, um desastre, apenas 3%. Fui além, Marisa. No papai-com-mamãe você deixou de experimentar mais que um orgasmo em 73% dos casos. No frango-assado sua performance melhora, com dois orgasmos em 47% das vezes. Agora, no parece-mas-não-é, show de bola, você chegou a três orgasmos em inacreditáveis 27%. Precisamos equilibrar a curva de nossa vida sexual. De hoje em diante, vamos priorizar as quintas-feiras e caprichar no papai-com-mamãe. O casamento durou pouco.

Já os torcedores impulsivos, em sua loucura romântica, entremeada por aluviões de lágrimas e fúrias, revelam-se mais interessantes em seu atormentado cotidiano. É o caso da história que vou contar, que se passou com outro tricolor meu conhecido. Bentinho é seu nome. Bentinho juntou-se à caravana heróica que foi testemunhar a humilhante estréia do Fluminense na terceira divisão. Jogo em Nova Lima, contra o Vila Nova. Assombrado pelo que via em campo, tisnou-lhe o juízo. Ao terceiro gol perdido pelo Magno Alves, juntou-se à turba que saiu pela cidade dando cabo de tudo o que encontrava pela frente, e foi flagrado por um meganha quando estraçalhava um orelhão. Levado às barras da autoridade policial, Bentinho viu-se defronte do famigerado Zezé Trabuco, delegado de Nova Lima. Doutor Zezé Trabuco fez jus à alcunha por useiro e vezeiro em inaugurar conversa com um reluzente 45 à mesa. Trabuco foi curto e grosso: “Escuta aqui, senhor Teotônio Bento” – este o nome de cartório de Bentinho: “Nova Lima não é Rio de Janeiro, não. Aqui é terra de gente aquietada, cumprideira de suas obrigações, temente a Deus e à Polícia. Posso aqui e ali ter um probleminha com uns excessórios de cachaça e deitação de arrogança. Mas faço valer minha autoridade, chamando o descoitado prum bem-entendido, pontando meu trabuco nunca a mais de meio metro de distância do cabra. Volta e meia tem fagulha de desordem no rastro de barra de saia, mas nunca passa de um safanão bem dado no chassi da pecaminosa. Aqui não tem esse negócio de arrastão. Deveu, vai enfiar as fuças no xilindró e ver o céu pelo tabuleiro de dama”.

Antes que o doutor delegado pudesse, em nome da obediência aos costumes, dar cabo do sermão, Bentinho o interrompeu, a procurar na autoridade não mais a compreensão por uma ato impensado, e sim alguém com quem pudesse repartir sua dor excruciante. “Doutor, é o Fluminense, doutor, Não é qualquer time, não. É o Fluminense de Castilho, Tim, Romeu, Rivelino, Manfrini, Jair Marinho, Romerito, Carlos Alberto, Branco, Edinho, Assis, Deley, da Taça Olímpica, do exemplo de organização e glória do futebol mundial. É o Fluminense, doutor. O Fluminense do sou tricolor de coração, sou do clube tantas vezes campeão, o senhor conhece, né, doutor? Ano passado já foi duro ver o Fluminense na segundona. Este ano, doutor, nós estamos na terceira, e logo no primeiro jogo a gente perde pro Vila Nova, com todo respeito, doutor, e o Magno Alves perde um gol daqueles. É muita humilhação. Sei que vamos nos reerguer, somos gigantes, eternos, é o Fluminense, porra… desculpe, mas o que eu vou dizer pros meus filhos? como é que eu posso enfrentar aquela flamengada do meu escritório? Doutor, nem na pior das pragas do Egito alguém sofreu tanto como estou sofrendo agora. Qualquer hora dessas, doutor, a gente perde pro Anapolina em pleno Maracanã, aí eu morro de vez. Me diz alguma coisa, doutor, me diz, por favor. Hoje eu sou um resto de homem, sou um pano roto. Acato sua autoridade, mas se o Magno Alves perder outro gol daquele, eu vou quebrar orelhão onde o diabo do orelhão estiver, em Pindamonhangaba ou Nova Lima”.

Doutor Trabuco não pensou duas vezes: “Inspetor, chame lá no sanatório o doutor de doido – Crisóstomo é o nome dele não é? Isso daqui não é coisa de cabeça ajuizada nos conformes, não. O homem variou”. O doutor de doido chegou e imediatamente instaurou o procedimento interrogatorial, ao fim do qual sentenciou com a gravidade de um Freud de província: “Doutor Trabuco, conheço o problema, pois, além de psiquiatra, sou torcedor. Trata-se de patologia vesânica, que se manifesta pela turbulência comportamental espasmódica. Recusando o mundo real, sua pan-realidade é transgressora da verdade visível, restando-lhe a verdade imponderável, cuja franja remete-lhe ao delírio providencialmente construído por sua anti-realidade. Em casos assim há cerca de 3% de probabilidade de surto indômito, embora inesquizofrenial”.

Diante daquele diagnóstico, o doutor Trabuco nem se deu o trabalho de pensar pela segunda vez: “Inspetor, recolha aos costumes o doutor Crisóstomo, por deitar palavrório perigoso, que atenta contra a integridade moral da família novalimense, desacostumada dessa oratória insidiosa. E solte-se o senhor Teotônio Bento, dando-lhe saber que, se outro orelhão ele vier a quebrar em qualquer pedaço de terra aquém daquele mourão que marca a valência de minha jurisdição, vai acompanhar o desinfeliz do doutor Crisóstomo, que àquela altura já deverá estar deitando oratória nos quintos dos infernos”.

O doutor Crisóstomo era cerebral, recusou-se, pela submissão à ciência, destravar um sonoro “Porra, Trabuco, o cara é torcedor apaixonado, o que é um orelhão perto disso?”.

No futebol, muitas vezes o que parece loucura é apenas o andar cadenciado e ininterrompível da tradição; o que parece loucura não raro é salvação; o que parece insano é o tacão da verdade rompendo a camada frágil da covardia, que aprisiona e mediocriza.