A minha relação com esses jogos estranhos nas noites de quarta-feira, em estádios distantes, um tanto escuros e bem pouco hospitaleiros, vem de longe. É verdade que as várias viagens a lugares como Buenos Aires, Assunção e Montevidéu, pelos anos recentes de Libertadores, reacenderam um ritual estoico de luta e abnegação. Mas a coisa toda vem de antes, muito antes de Jundiaí, muito antes de São Caetano, muito antes das novas arenas do Grêmio e do Palmeiras. A verdade é que eu poderia escrever uns dez parágrafos sobre o bizarro jogo contra a Ferroviária, em Araraquara, para onde fiz uma viagem de três horas de ida e três horas de volta, desde a minha casa em São Paulo, apenas para tentar buscar mais uma vitória do Fluminense e o fim da seca de gols do capitão Fred. Voltei frustrado com a missão parcialmente cumprida, mas confesso que no que pensei mesmo, ao longo do caminho que percorri com os amigos Daniel Huallem e Dílson Motta, foi nas luzes fracas daqueles pequenos estádios nas noites de quarta-feira dos meus tempos de garoto de Madureira.

Quem tem mais de 40 anos de idade se emociona quando ouve certos nomes. Nomes de gente que já partiu, ou quase. Nomes que povoaram nossas jovens noites de quarta e tardes de domingos, e que agora estão desaparecendo lentamente, sem alarde, como aqueles velhinhos que os parentes insensíveis escondem em asilos para nunca mais ter que reencontrar. Nomes como os das tribos que batizam as ruas do centro de Belo Horizonte e desapareceram para dar lugar à cidade grande. “A cidade plantou no coração tantos nomes de quem morreu. Horizonte perdido no meio da selva brotou o arraial”. Lô e Márcio Borges cantaram e contaram assim a triste história de guajajaras, tamoios, tapuias, tupinambás e aimorés, que hoje sobrevivem apenas nas placas das ruas da capital das alterosas. No futebol, temos o mesmo desfile de nomes que vão esvanecendo.

 
 
 

Nomes de quem morreu. Ou quase. Nomes sombrios. Nomes desbotados. Nomes como São Cristóvão, Olaria, Juventus, Madureira, Bonsucesso, Campo Grande e Portuguesa – a santista e a da Ilha. Nomes tristes em suas tristes casas. Estádios que abrigaram tantas paixões, que nos acolheram em tantas tardes de futebol, e que hoje são quase fantasmas de concreto: Figueira de Melo, Bariri, Rua Javari, Conselheiro Galvão, Teixeira de Castro, Ítalo Del Cima, Luso-Brasileiro. Quantas lembranças do Luso-Brasileiro, na Ilha do Governador! “O estádio dos ventos uivantes” – diziam os narradores, por causa da ventania, tão comum por aquelas bandas. Lá eu vi chutes ganharem efeitos impossíveis, bolas cruzarem o meio de campo e voltarem. Lá foi feita por Ronaldo Theobald uma das mais belas fotografias do esporte: a de Roberto Dinamite, passando pelo gradil que ligava o vestiário ao gramado, com dezenas de mãos estendidas em sua direção. Parecia um santo, um beato, um São Francisco de Mestre Vitalino.

Na Rua Bariri, eu vi Fernando Pirulito fazer e acontecer contra os times grandes. Jamais teve uma oportunidade numa equipe de primeira, mas eu garanto – ao menos minha memória afetiva garante – que ele jogava o fino. Também pelo Olaria (ou seria pelo Bonsucesso?) atuava um goleiro cujo nome o tempo apagou-me da lembrança, mas que realizava façanhas como defender pênaltis cobrados pelo Zico. E havia ainda um goleiro mítico que começou a carreira na Bariri: Castilho. Da mesma forma, foi na singela Rua Javari que Pelé marcou o mais antológico de todos os seus gols.

Eu poderia contar mil histórias das viagens – viagens mesmo! – que fiz para ver peladas no Ítalo Del Cima ou em Três Rios. Poderia descrever os calores desérticos que me fizeram padecer como um sheik de bloco de sujos em Teixeira de Castro e Conselheiro Galvão. Poderia falar de um certo Ronaldinho, que apareceu no São Cristóvão e conquistou o mundo. Poderia também mencionar amigos que me acompanhavam nessas grandes jornadas de amor ao Fluminense. Alguns, como o Bruno Fiorentini, foram morar em lugares distantes como Seattle, outros deixaram de ser amigos, outros morreram e serão amigos para sempre. Infelizmente, o espaço é curto e a memória incerta. Essas são histórias para um livro, não para uma coluna. Mas não posso deixar de dizer o quanto me emociono quando os campeonatos estaduais recomeçam, as primeiras fases da Copa do Brasil são disputadas e os nomes daqueles times modestos – viabilizados pelo apoio do comércio local, de sapatarias, abatedouros, fábricas de tecidos e bicheiros generosos – voltam a ocupar as páginas dos jornais.

Times pequenos. Pequenas lantejoulas das fulgurantes fantasias dos clubes de massa. Adereços incapazes de brilhar sem a luz dos grandes, mas que, por eles iluminados, ajudaram a embelezar o nosso futebol. Clubes de subúrbio. Tardes de subúrbio. Times do interior. Ecos de um tempo distante. De uma época mais simples, de sorvetes de creme holandês, de triguilim, de quebra-queixo, de camisas sem publicidade. De estádios cheios e de corações abarrotados.

“São Cristóvão, campeão de 1926. Um dia será outra vez” – dizia o encardido decalque no para-brisas do fusquinha de um vizinho. Deus do céu, como eu queria que a profecia se cumprisse! Que o São Cristóvão voltasse a ser campeão. Que o Juventus incomodasse os grandes outra vez. Que o estádio de Conselheiro Galvão recuperasse o colorido e o cheiro de comida caseira dos sobradinhos da vila que termina justo em seu portão principal. Que eu pudesse voltar a beber um Mineirinho em Ítalo Del Cima. Que as metrópoles recobrassem a autenticidade das tardes da minha infância. Que eu pudesse voltar a ser jovem – ou ao menos voltar a me sentir jovem nesse mundo tão chato do futebol moderno.

Talvez por conta de tantas e tão sentimentais lembranças, preciso confessar que senti algum encanto com os três gols da Ferroviária, no estádio da Fonte Luminosa (até o nome é eivado de poesia). Isso porque a cada gol do time da casa o sistema de som do estádio emitia um poético som de apito de locomotiva. O trem que me levava de Madureira para os subúrbios da Central onde o Fluminense costumava jogar nos anos 70 não fazia barulho algum – além do ranger dos vagões e das rodas arranhando os trilhos –, mas foi naquele velho trem que pensei quando, por três vezes, ouvi o apito de Araraquara. Três apitos, como na fábrica de tecidos de Vila isabel, na canção de Noel. Saudades da Vila, do Noel, das noites de quarta, do futebol inocente, quanta saudade de tantas coisas. É isso o que dá viajar por muitas horas, ao lado de grandes amigos, para ver um jogo do nosso Tricolor…

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Nota do autor: a foto que ilustra a coluna mostra o estado atual do saudoso estádio Ítalo del Cima, em Campo Grande.